Introdução

Há muito o que ser aprendido. Há muito o que podemos extrair do que vemos, tocamos, ouvimos, e acima de tudo, sentimos. Nossa sabedoria vem dos retalhos que vamos colhendo ao longo de nossa evolução, que os leva a formar a colcha que somos. Esse espaço é para que eu possa compartilhar das luzes que formam o que Eu tenho sido!!!

sexta-feira, 20 de maio de 2016

MAUS MOMENTOS, NOVAS POSSIBILIDADES


Em meio à atual crise democrática no Brasil, a ação política pensada e construída a partir do princípio da pluralidade motiva o despontar para um recomeço por meio da promoção da liberdade

Por Rogério Luís da Rocha Seixas, no PORTAL FILOSOFIA, CIÊNCIA & VIDA.

Em nossa atualidade, podemos nos referir a alguns diferentes tipos de crise: a crise econômica, a crise de valores, a crise educacional e, claro que não poderia estar ausente, a crise da política entrelaçada com a percepção de uma grave crise na estrutura democrática, principalmente quanto ao seu aspecto representativo, isto é, quando se percebe uma duradoura e preocupante crise das instituições ditas democráticas. Neste contexto, Hannah Arendt (1906-1975) desenvolve um importante diagnóstico crítico, referente à crise da "ação política". Esta pensadora faz o trabalho filosófico de "diagnosticar o seu momento presente", não praticando um mero denuncismo, mas problematizando e concretizando seus fatores e elucidando os seus acontecimentos. A reflexão de Arendt apresenta outro ponto muito peculiar: ao pensar a crise, vislumbra-se sempre um novo começo. Um recomeçar que só por meio da ação política, dimensão da condição humana que mais o humaniza, sendo necessário por este motivo, pensar novas formas de ação política, visando principalmente a cuidar do mundo. Por não estar em mero isolamento, mas por compartilhar com outros homens o mundo em que habita, o homem o faz em plural. Para a autora, a política possui apenas um meio e este representa a manifestação da liberdade na esfera pública por meio da ação política dos homens em conjunto, pois como afirma Arendt: "Os homens são livres - diferentemente de possuírem o dom da liberdade - enquanto agem, nem antes nem depois; pois ser livre e agir são uma só coisa".[1] Todas as atividades da vita activa (labor, trabalho, ação) estão relacionadas com a política, mas a ação é a atividade política por si mesma. E a liberdade da ação política só pode ser mantida e protegida da violência política, que cala a voz dos homens em plural [2], se estes em conjunto mantiverem a esfera pública para agirem. E se podemos enunciar uma crise da ação política, partindo das análises de Hannah Arendt, esta se faz cada vez mais presente, não apenas e necessariamente em ambientes com pouca ou nenhuma abertura para a ação política, mas se indica a diluição da esfera pública, mesmo em ambientes que se identificam como democráticos e livres. Desse modo, pode-se perceber a noção de uma participação de cidadania radical, implicada com a ação política, marcada pela participação política como o elemento constituinte de qualquer comunidade política e democrática. Por este motivo, Arendt alerta que a política não é matéria apenas para políticos profissionais. Algo comum em democracias no geral, inclusive e principalmente a brasileira, que agora demonstra sinais de constituição de uma esfera pública cidadã, embora sob a égide de um "antagonismo do ódio". 

Arendt demonstra como a concepção de política e liberdade encontra-se implicada. Sendo assim, é na ação política que se encontra a liberdade. O sentido de agir denota a importância da ação política, aventando-se que o essencial da ação política reside na pluralidade para a constituição das esferas públicas, apresentando-se como condição de formação da própria sociedade. Alerto para um fator importante: o sentido de liberdade exposto aqui e relacionado diretamente com a ação política não se configura como uma essência própria da condição natural humana. A própria política não é algo dado, como comumente interpreta-se, mas se constrói e assim a liberdade é exercida quando surge abertamente. No espaço público "entre-os-homens". Ora, partindo desta capacidade de ação plural dos cidadãos objetivando o reconhecimento de suas vozes na esfera pública, o exercício dessa liberdade corresponde ao poder. Como afirma a autora: "O poder corresponde à capacidade humana não somente de agir, mas de agir em comum acordo. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e existe somente enquanto o grupo se conserva unido". [3] O poder de agir em conjunto se baseia no direito de associação e requer a comunicação entre as pessoas no espaço público e, portanto, o direito à informação.

VIOLÊNCIA E PODER
Após esta exposição, podemos acentuar que partindo da crítica política arendtiana e por consequência da própria modernidade, a crise do agir político se expressa na desvinculação entre política e liberdade, enfraquecendo a ação participativa cidadã e a constituição de esferas públicas. A capacidade de agir em concerto, de agir com, significa a realização de uma habilidade intrínseca ao homem e a instauração da vocação da sociedade. A partir da interpretação de um agir em concerto na esfera pública, a noção de poder arendtiano se identifica em sua teoria como algo inerente a toda a comunidade, a toda a sociedade, à manutenção da pluralidade. Nesta situação um fator é essencial: a legitimidade. Arendt afirmará que "o poder não precisa de justificação, sendo inerente à própria existência das comunidades políticas; o que ele realmente precisa é de legitimidade". [4]

Na política, como anteriormente destacado, a ação desencadeia processos que geram poder. Este poder de agir não pode ser transferido ou usurpado. Não deve desaparecer pela inação dos homens, com o risco de a esfera pública se dissociar da ação cidadã. Alerte-se que é exatamente devido à desintegração do poder agir politicamente em plural, que enseja o aparecimento da ordem violenta, justificando-a como instrumento de ação política. Facilitando a manutenção de uma ordem estabelecida, permitindo que esta destrua o poder de ação política pública.

Percebe-se que Arendt destaca o sentido de poder positivo, diretamente relacionado com a ação política, enquanto que seu oposto é exatamente a possibilidade da manutenção desta ação. Esta visão mais negativa se refere, é claro, ao poder violento, caracterizado como unilateral e opressor. Obviamente, anula-se a promoção da liberdade, oriunda da ação política. Em se tratando de poder violento, sendo assim interpretado como algo único, acarretando a destruição da esfera pública, não se pode escapar de fazermos referências aos modelos totalitários, que de fato causaram uma fratura no âmbito da práxis política moderna. Por sinal, indica-se neste ponto uma situação bastante paradoxal: os modernos esperavam que ao entregarem a política ao Estado, este promovesse maiores liberdades e garantisse a separação entre esfera privada e pública, fator essencial da polis grega clássica. O Estado não interviria ou o faria de modo mínimo na esfera privada e promoveria a necessidade da liberdade política na esfera pública, garantindo a vida e proporcionando a liberdade de seus cidadãos. Contudo, criaram-se mecanismos tão devastadores que foram capazes de descartar a cidadania, promoveu maior dominação e viabilizou a descartabilidade da vida humana, comprometendo não só a vida como também a própria liberdade. 

Este paradoxo expõe os conflitos existentes nas sociedades que têm sua origem no conflito das interpretações e na violência inicial e residual do poder, enquanto ação política em plural ou poder usurpado e coercivo, restrito a alguns ou a um. Demonstra-se assim a fragilidade do viver em conjunto, mesmo num Estado democrático, que por sinal representa a prática democrática ou a tolera, se tudo girar em torno do consenso unicista. O dissenso é praticamente sinônimo de desordem. De desarmonia. De grave crise democrática. Este quadro reflete a condição da política na atualidade, convertendo-se em uma atividade administrativa e burocrática e, consequentemente, mesmo em espaços ditos democráticos, o ponto de crise se instala com a perda exatamente da dimensão de como a ação espontânea dos homens é essencial para a prática democrática participativa e que ao mesmo tempo, contribui para o fortalecimento da estrutura democrática representativa ou, em outros termos, para a consolidação das instituições de forma a não usurparem o poder. Quando atravessamos um quadro político marcado exatamente por este abuso institucional, que acarreta no próprio desgaste da política e cria-se um forte sentimento de apatia e rejeição, pelo menos referentemente ao que comumente se interpreta como política, somos remetidos a indagar se "política e liberdade são compatíveis entre si, se a liberdade não começa apenas onde cessa a política, de modo a não existir mais liberdade onde a coisa política não encontra seu meio e limite em parte alguma". [5] Origina-se uma ausência de sentido com relação à ação política, resultando em um mero ajustamento ao modo de ser político no âmbito institucional. A dimensão humana da ação "que não apenas mantém a mais íntima relação com a parte pública do mundo comum a todos nós, mas também é a única atividade que o constitui", [6] perde espaço para uma gestão técnica de governar, transformando a esfera pública em mero espaço de interesses privados, incentivado por meras trocas econômicas, típicas de uma sociedade de produtores e consumidores, evidenciando o triunfo do homo faber sobre a ação e a corrosão da política em um simples meio para se atingir um meio supostamente superior, que não leva em conta a res pública, mas faz normalmente o uso desta para satisfação do âmbito privado.

Dialogando com Arendt, percebemos um ponto essencial de seu diagnóstico referente à crise da ação política: a pluralidade política é irrepresentável, nenhuma entidade ou instituição pode anular ou substituir as vozes dos cidadãos. Por esta razão, toda ação política implica, sempre, na presença dos outros, é realizada em comum. Como destaca Odílio Aguiar, Arendt quer alertar que ao contrário de uma interpretação comum a toda nossa tradição e que alcançou a atualidade, a pluralidade política não é sinônimo de fraqueza, mas a garantia contra toda e qualquer desmesura (hubris): dominação, tirania, etc. [7] Acrescente-se que esta pluralidade de muitas formas passa a ser interpretada como "ameaça à ordem" e "atentado contra as instituições". Assim sendo, para se proteger a "liberdade", busca-se fortalecer as práticas de segurança que fazem uso exatamente de uma hubris da força e coerção, tornando a violência um instrumento político para preservação da segurança em nome da liberdade. Esta alusão feita ao excessivo discurso e prática da maior segurança para garantir a liberdade, não se limita em hipótese alguma a estruturas políticas autoritárias ou segundo um vocabulário arendtiano: totalitárias. Nossas democracias representativas liberais, por meio das suas instituições, expressam de modo perplexamente paradoxal esta crise da ação política, usurpando o poder da pluralidade política e exercendo a repressão como forma de assegurar a liberdade, coibida pela prática da violência do aparato de Estado. Pensando como Arendt, o poder deve ser exercido sem o uso da violência, da força e da coerção, e a autoridade deve ser fundamentada no reconhecimento coletivo. Claro que a filósofa não era ingênua a ponto de acreditar que a violência não se caracteriza como instrumento de governo. Max Weber (1864-1920) destaca que o Estado "reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física". A questão para Arendt, como se pode perceber neste texto, é a de demonstrar como a noção de poder é muito mais ampla, diferenciando-se do conceito de governo, que se confunde em nossa prática política de gabinete. Seu objetivo é distinguir poder e violência. Arendt assevera que "o poder é de fato a essência de todo o governo, mas não a violência. A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelos fins que almeja". [8] O poder não se sustenta ou se legitima de fato sob a tutela de grupos ou de estruturas de governo que o usurpam, mas, sim, na pluralidade da esfera pública.

CRÍTICAS À DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
Ora, se como constatamos ao longo do texto, defende-se que o poder está intrinsecamente relacionado à liberdade plural e não se realiza fora da ação dos homens na esfera pública, o monopólio da esfera pública pelos representantes eleitos pelo povo pode ser compreendido como não apenas a obstrução deste poder, mas a manipulação da coisa pública para usufruir desta para satisfação de seus interesses privados. Esclareça-se que Arendt não é radicalmente contra a estrutura institucional de representação do povo. A questão principal, percebida por meio de seu diagnóstico político crítico, busca nos permitir vislumbrar um quadro atual das democracias que no seu geral e sem deixar de incluir a nossa, correm o mesmo risco: qualquer sociedade que não participa da vida pública estabelece a apatia, a inação, o conforto em apenas ser "representado" e não se "fazer ouvido e visto enquanto representado", além e principalmente abrindo espaço para uma "ditadura do privado", vedando a participação política pública, inibindo, assim, a ação política espontânea, impossibilitando ou dificultando aos governados o exercício de exercerem o poder, facilitando o controle dos governantes, ou para o estabelecimento de uma "democracia oligárquica vitalícia", uma característica bem nacional, em que os negócios públicos tornam-se posse de partidos que permitem a ascensão de famílias que transferem a posse do poder de geração a geração, mantendo a hegemonia do privado sobre o público. Agora, o que claramente não se pode negar são as intensas críticas contra a unicidade ou consensual idade do sistema representativo democrático liberal moderno, diagnosticando e relacionando a crise da ação política com a crise deste modo de governar representativo. O próprio governo representativo está em crise hoje, em parte porque perdeu, com o decorrer do tempo, todas as praxes que permitiam a participação dos cidadãos, e em parte porque atualmente sofre da mesma doença dos partidos: burocratização e tendência do bipartidarismo em não representar ninguém exceto as máquinas dos partidos. [9]

Para Arendt, é de fato inviável a prática da representação política de todos por si mesmos, isto é, por uma ação política participativa, a instauração da representação democrática se materializa pela gura dos partidos e dos seus representantes, eleitos pelo povo, com o objetivo e o dever de representarem (cuidarem) dos interesses e das necessidades dos representados. Há sempre anseio de que os partidos, por meio de seus representantes, atuem em congruência com boa parte das necessidades e reivindicações dos representados ou como mais comumente denominamos: dos eleitores que constituem o povo a ser representado. Assim sendo, o exercício desta representação em plena congruência entre representantes e representados, promoveria a realização da coisa pública, no sentido mais universalizável possível. Esta não deixa de ser a descrição rápida de um tipo de contrato. Identificam-se aqui pelo menos dois problemas essenciais: o da soberania popular, que mediante ao uso do voto, determina uma legitimidade a um número limitado de pessoas o poder de governá-las, limitando-se apenas a conservar o direito de avaliar sua conduta no pleito posterior. E o da representatividade delegada, em que se parte da premissa de que o representante eleito não satisfará sua vontade privada, cuidando dos negócios públicos, visando à promoção do bem comum dos representados. Porém, a distância entre os representantes e os representados torna-se tamanha que o segundo renuncia durante anos a uma parte de sua vontade, com a esperança de que seu representante cumpra com as funções de modo correto e desejado. Indicamos o ponto de crise essencial da ação política: a redução da atividade política à administração dos interesses privados, acarretando no desaparecimento da esfera pública. O contrato é utilizado pelos que governam para alcançar a legitimidade para mandar e obrigar o cidadão que os elegeu representantes a obedecerem. Temos a invasão da esfera pública pela privada e a fusão do exercício de mandatário de governar pelos políticos profissionais, degradando a noção da ação política. A democracia representativa traz consigo a noção de que se pode e até deve prescindir da participação política pública e a estrutura institucional-partidária, legitimada pelo pleito, estrutura-se em um aparato de especialistas que se arrogam de serem especialistas em governar. É exatamente nesta situação que se percebe a atividade política tendendo a se reduzir à satisfação e administração dos interesses privados, ameaçando a esfera pública em seu caráter plural e comum. Como resultado, a apatia e o sentimento de impotência política, afinal a pluralidade vê-se sem condições de se construir e cética quanto à possibilidade de exercer alguma influência política. Interessante que tal "ponto de crise" revela um estado de tensão entre participação política e representação política. Nesta tensão coloca-se em jogo a própria dignidade do espaço público e da ação política. Se não há pessimismo na análise arendtiana, ao contrário, pois a dita "crise" permite pensar o novo. O recomeçar. Também não temos um otimismo ingênuo, pois a autora reconhece as dificuldades desta renovação.

AÇÃO POLÍTICA E DISSENSO
Ora, partindo da premissa de que a soberania popular é uma ficção, Arendt ressalta o valor maior da liberdade, pois ser livre é não estar submetido ao jugo da soberania da vontade de outro. Agir em concerto na esfera pública significa renunciar à soberania das vontades. Tal postura representa a ligação direta entre ação e liberdade, erigindo a esfera pública como resultado da ação política efetiva. O sentido de agon político de Arendt é criticado como antidemocrático e anti-institucional, contudo não se pode deixar de observar que a autora rejeita o consensualismo típico de nossas democracias.

Se agon não parece adequado, a noção de desobediência civil, contrapondo-se ao consensualismo, abre a possibilidade de um fator muito importante: o encontro entre a Ética e a Política. Tal encontro, sendo passível de se realizar, renovando a ação política, não se dá pelo consenso, mas pelo dissenso. [10] Como aponta Odílio Aguiar, um dissenso não é desestabilizador da comunidade, mas na constituição de um consentimento tácito e não uma mera ficção por parte dos cidadãos, no qual o dissenso é parte inerente. Esclareça-se que o dissenso nada tem a ver com a transgressão criminosa, confusão muito comum, que criminaliza a ação política. A dimensão do que Arendt vai denominar como "publicidade" do dissenso está relacionada exatamente à abertura de possibilidade de inovar e começar a instauração de espaços de liberdade igual para ação de todos os cidadãos. Ou pelo menos assim pensa a filósofa, com relação à "possibilidade de instauração de espaços de liberdade". Algo que não necessariamente possa acontecer. 

Agora, como pensar a realização da prática agonal da política? Ou realizar o dissenso para promoção da publicidade na esfera pública? Em outros termos: como agir em concerto em nossas sociedades democráticas atuais? Sociedades marcadas cada vez mais por mecanismos de encolhimento de espaços de liberdade em nome de maior segurança da própria liberdade. Se aceitarmos a noção de agon político na democracia, os fatos referentes ao período das eleições no Brasil e, principalmente, a pós-eleição, nota-se um enfrentamento movido por sentimentos como o ódio e o medo que abrem espaço para se praticar a violência como resolução política. Muito mais do que um agonismo político, experimentamos um "antagonismo do ódio", que infelizmente em nada contribui para uma ação política mais saudável. Ao contrário, os sentimentos são manipulados por todos os protagonistas do jogo politiqueiro que abala totalmente a credibilidade da política como promotora da liberdade e do bem comum. Há uma tentadora relação de cumplicidade com a intervenção de forças autoritárias. Destacando-se que autoritário neste sentido não se limita a identificar uma estrutura militar. Decisões e ações de representantes civis eleitos podem retratar o flerte tentador do abuso autoritário sobre a coisa pública em benefício de objetivos privados. Ironicamente, estas manifestações utilizam-se da esfera pública para expressar este desejo. Irônico e contraditório, pois em uma estrutura política autoritária ou totalitária, a esfera pública se desfaz. A ação política pública é reprimida. Ao mesmo tempo, não se pode negar que há um surgimento de esfera pública e da ação política, especialmente com referência à questão de como não ser governado de modo abusivo. Governado por esta ou aquelas pessoas. Governado segundo decisões que não são compartilhadas, apenas aplicadas. Governados de forma que o abuso do poder por parte dos governantes, os desvia exatamente de suas funções: governar a coisa pública para o público, instaurando a ditadura do privado e a execução da corrupção.

Mais do que um resgate do sentido de política, a filósofa problematiza a renovação e provável reabilitação da ação política pública, essencial para promoção de liberdade e, por consequência, utilíssima para se repensar as bases da democracia. É assim que a autora percebe na crise da ação política um modo de diagnosticar as diversas crises da atualidade política e possíveis caminhos para um recomeçar. Se pensar e trilhar caminhos novos é a principal proposta de Arendt para revitalizar o éthos público.

Partidos políticos X ação política cidadã

Representar exatamente os interesses da "ditadura do privado" ou da "democracia oligárquica vitalícia". Arendt desenvolve uma crítica bastante radical ao modo como se estrutura e funciona o sistema partidário em sua totalidade. Os partidos políticos, independentemente de ideologia, são apontados como obstáculo à ação política cidadã, visto que tendem a monopolizar "as ações políticas". Esta crítica da autora se explica por sua preferência ao que denomina de "sistema de conselhos", substituindo o sistema democrático representativo partidário, por uma confederação de repúblicas. A inspiração republicana aparece como esfera da ação política, permitindo que a liberdade se realize. Requerendo uma participação constante dos cidadãos nos negócios da res publica, exigindo a prática e formação de virtudes políticas para esta participação pública. Não se pode deixar inicialmente de se perceber o eco da polis grega como espaço para se atingir em comunidade uma felicidade pública. Quanto à concepção republicana, embora fosse preciso desenvolver melhor esta questão, não sendo este o objetivo deste texto, Arendt se apresenta como uma ferrenha representante do "republicanismo cívico".

Não se pode deixar de destacar, entretanto, que os conselhos republicanos são percebidos como iniciativas essenciais, com o intuito de se tentar redefinir a representação política no contexto das atuais democracias representativas. Não se trata aqui de mera inclusão de todos, para de tudo participarem, algo reconhecidamente inviável, mas o objetivo se concentra na abertura e multiplicação de esferas públicas, efetivando mais possibilidades de ação política. Reforçando a esfera pública por meio do fortalecimento da pluralidade. O que se deve perceber nesta concepção é a preocupação em se tentar evitar o isolamento dos homens por meio da constante massificação, para que assim não se tornem alvos fáceis de manipulação e arregenciamento de partidos demagógicos e assim se possa preparar o ninho propício para formação de estruturas sociais totalitárias.

1 - ARENDT,1988, pág.79
2 - Para Arendt "A Política baseia-se na pluralidade dos homens". In. O que é política? 2002, pág. 21
3 - ARENDT, 1994, pág. 36
4 - Idem, 1994, pág. 41
5 - ARENDT, 2002, pág. 39
6 - Idem, 2010, pág. 247
7 - ODÍLIO, 2001, pág. 79
8 - ARENDT, 1994, págs. 40-41
9 - Idem, 2005, pág. 79
10 - ARENDT, 2004, pág. 49

REFERÊNCIAS

ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. Tradução José Volkmann. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.

___________. Sobre a Violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

ODÍLIO, A. Filosofia e Política no Pensamento de Hannah Arendt. Fortaleza: EUFC, 2001.

ARENDT, H. A Dignidade da Política.Tradução de Helena Martins et al. Revisão Técnica Antônio Abranches. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

__________ O que é Política? Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

__________ Crises da República. Tradução José Volkmann. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

__________ A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Revisão e apresentação: Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. 


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