Introdução

Há muito o que ser aprendido. Há muito o que podemos extrair do que vemos, tocamos, ouvimos, e acima de tudo, sentimos. Nossa sabedoria vem dos retalhos que vamos colhendo ao longo de nossa evolução, que os leva a formar a colcha que somos. Esse espaço é para que eu possa compartilhar das luzes que formam o que Eu tenho sido!!!

domingo, 13 de março de 2016

A INTOLERÂNCIA SOB A ÓTICA DA LEI E DA DOUTRINA ESPÍRITA



Publicado originalmente na Revista da Abrame - Associação dos Magistrados Espíritas, número 16. Para acesso a mais informações acessar ABRAME.ORG





“As crises começam sobretudo na esfera das idéias”. José Luiz Archanjo – Doutor em Filosofia.

“O que importa é o que se vê, mais do que quem vê ou como vê. O objeto é mais precioso que sua ciência”. Teilhard de Chardin.


O mundo da pós-modernidade é o da diversidade. Jamais o ser humano em sua passagem pela Terra teve acesso a tantas informações e conhecimentos. Os instrumentos de acesso ao saber – livros, jornais, revistas, redes sociais e a internet – possibilitaram ao homem conhecer mundos nunca antes imaginados a não ser através das ficções de Julio Verne ou de Carl Sagan. O imenso saber armazenado nas memórias virtuais dos computadores, resultado de milênios de história da humanidade, se encontram à sua disposição nos arquivos desenvolvidos pela ciência e tecnologia. Invadimos o microcosmo e o macrocosmo à procura dos insondáveis mistérios que envolvem a natureza e iniciamos por descobrir a dimensionalidade de horizontes não concebidos pelo ser humano. 

O homem, em sua presumida maioridade, se viu apequenado e insignificante à frente de informações desconhecidas. A despeito de imensos avanços, não fomos ainda capazes de conhecer os mecanismos da nossa personalidade para desvendar o universo que comanda nossas decisões existenciais. Todas as descobertas desenvolvidas por Freud e Jung no campo da psiquiatria e da psique da pessoa, não foram suficientes para desvendar os intrincados mecanismos presentes no íntimo da personalidade do homem, para que ele possa assumir o controle da sua vida na direção da harmonia e da sua inclusão na diversidade. 

Parece-nos que estamos cada vez mais divergentes. É contraditório reconhecer que a despeito do domínio de tanto conhecimento, não desenvolvemos ainda nossa capacidade de conviver com o outro de forma tolerante e pacífica. A intolerância é o acesso do homem ao conflito. 

Nesse momento, a pessoa se afasta da lição contida na filosofia do evangelho que prescreve: “portanto, tudo que quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas” (Mateus, cap.7, v.12). Contrariando essa máxima de relação, o homem inexplicavelmente aplica a Lei de Talião do “olho por olho, dente por dente”, diante dos inevitáveis e sucessivos conflitos humanos. Esses efeitos produzidos pela intolerância geram profundo sofrimento e dor à pessoa humana em razão da disseminação do sentimento da vingança, do ódio, da intolerância, do revanchismo e das vibrações inferiores que comandam o espírito humano. Triste época de transição em que se opera a perda dos valores no planeta Terra!

O ano de 2015 se inicia com o lamentável episódio do ataque ao jornal Charlie Hebdo em Paris, no dia 04 de janeiro. Exatamente 17 dias antes do dia 21 do corrente mês, em que a Lei número 11.635/07 de 27 de dezembro de 2007 instituiu como o Dia Nacional de combate à intolerância religiosa. O homicídio de vários jornalistas motivado por atos ofensivos à ideologia religiosa, nos remete à indagação contida no texto de Vera Guimarães Martins: “As contradições do discurso da liberdade”, publicado na Folha de São Paulo do dia 11.01.2015 na página A6 – PODER, ao questionar: “A liberdade de expressão deve ser soberana a ponto de permitir que uma publicação satírica distribua ofensas a torto e a direito, insultando governos, políticos, autoridades, celebridades, lideres religiosos e figuras sagradas?”. Nessa linha de intelecção Hélio Schwartsman, no mesmo jornal e na mesma data, na página A2 – Opinião, em artigo de sua autoria intitulado “Uma defesa do insulto”, o jornalista afirma: “Para funcionar plenamente, a democracia exige algum nível de insulto”.

É importante ressaltar que os artigos dos dois jornalistas aludem, simultaneamente, às palavras ofensas e insultos. É nessas questões que devemos centralizar nossa proposta de reflexão. O que são atos ofensivos e insultuosos? Constituem práticas que violam os direitos essenciais do ser humano previstos no artigo XII da Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamado pela Assembléia da ONU em 1948 e, no mesmo sentido, no artigo 5º, inciso X da Constituição Federal de 1988. A prática desse comportamento ofensivo da pessoa contra o outro – seja pessoa física ou jurídica - implica em violações que ferem a dignidade do ser humano ou do dogma violado – um direito fundamental prescrito e tutelado na Declaração Universal dos Direitos do Homem. O insulto ou a ofensa é uma forma de violência verbalizada por aquele que a profere. O agressor poderá utilizar as palavras ou imagens, ainda que verdadeiras, com o propósito de humilhar ou atingir a vítima ou o conceito religioso em seus pontos sensíveis e, dessa forma, violar valores essenciais que integram a personalidade da pessoa ou do dogma atingido.

Ainda que as palavras ofensivas sejam verdadeiras o agressor-vítima não poderá fazer justiça pelas próprias mãos, sob pena de configurar exercício arbitrário das próprias razões, crime capitulado no artigo 345 do Código Penal brasileiro.  No caso de não serem verdadeiras as palavras ofensivas, configura-se crime contra a honra do ofendido – calúnia, ou injúria -, bem como, ato ilícito gerador de danos morais, por ofensa à dignidade da pessoa ou crença decorrente da violação dos direitos fundamentais da vítima.
        
Cumpre ponderar que o direito cessa quando se inicia o abuso – a doutrina francesa prescreve que – Le droit cesse con l’abuse. O artigo 187 do CC/2002 assinala que o direito deve ser exercido com moderação e equilíbrio. Na prática, cometerá ato ilícito o agente que, “...ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Será contrassenso imaginar que a ordem jurídica tutela qualquer exercício de direito irresponsável. O abuso ou insulto configura um não-direito. E o agente, ao exercê-lo, fere direitos fundamentais – exatamente aqueles proclamados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela própria Constituição Federal. Essa linha demarcatória entre o uso regular e anormal do direito é absolutamente relativa e irretocável. Afinal, como assinalado por Hely Lopes Meirelles , “em nosso direito predomina a ideia da relatividade dos direitos, porque como adverte Ripert, o direito do individuo não pode ser absoluto, visto que o absolutismo é sinônimo de soberania (destaque do autor). Não sendo o homem soberano na sociedade, o seu direito é, por conseqüência, simplesmente relativo”.

Admitir  a alteração dessa linha seria o mesmo que transigir com práticas ilegais porque toleráveis, ou realizadas com base no direito de livre manifestação do pensamento sem limites. O exercício do direito de expressão deve ser exercido com moderação. Esse direito cessa quando praticado com o uso de insultos ou abusos. Nessa linha de valores, não há espaço para a transigência! Coerente com essa linha de pensamento, o STJ pontifica que, “a liberdade de informação e de manifestação do pensamento não constitui direito absoluto, podendo ser relativizado quando colidir com o direito à proteção da honra e à imagem dos indivíduos, bem como quando ofender o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana” (in STJ –  AgRg no Ag 1.399.189/PR- Relator: Min. Marcos Buzzi - 4ª Turma – julgado em 09.12.2014).

Os meios para reprimir a intolerância decorrente dessa prática são jurídicos. O próprio artigo XIII da Declaração Universal dos Direitos do Homem outorga tutela às vítimas do abuso ou do uso irregular e irresponsável do direito, ao prescrever: “Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. Assim, o Estado democrático que legitima constitucionalmente a livre manifestação do pensamento assegura, por outro lado, o direito de resposta e defesa contra aquele que ultrapassa os limites éticos presentes na ordem social. Não ofender para não ser responsabilizado civil e penalmente – essa é a ideia! O homem não pode ser irrestritamente soberano no exercício do direito – ainda que assegurada a liberdade de expressão. Por essa razão o STJ prescreve fronteiras no exercício da livre manifestação do pensamento: “A liberdade de se expressar, reclamar, criticar, enfim, de se exprimir, esbarra numa condicionante ética, qual seja, o respeito ao próximo. O manto do direito de manifestação não tolera abuso no uso de expressões que ofendam à dignidade do ser humano; o exercício do direito de forma anormal ou irregular deve sofrer reprimenda do ordenamento jurídico (destaque do autor). (In STJ – REsp. 1.169.337/SP – Relator: Min. Luis Felipe Salomão – 4a. Turma – Julgado em 18.11.2014). Isto significa que o direito universalmente consagrado nos Estados Democráticos de informar e de livre manifestação do pensamento, deverá ser exercido dentro dos limites éticos e respeito aos direitos alheios. Não se concebe direito sem limites. Isto porque, ocorrerá inevitável negação do direito nas situações em que for exercido fora dos limites do condicionante ético.

A violência do ataque ao jornal Charlie Hebdo é o resultado de atos ofensivos e insultuosos aos sentimentos religiosos daqueles que professam ideologias, que foram atingidas em sua honra pelas frases e imagens insinuantes publicados pelo semanário francês. Como afirmou Frei Leonardo Boff em recente declaração, “não se devem criar as condições psicológicas e políticas que levem a alguns radicais a lançarem mão de meios reprováveis sobre todos os aspectos”. Na realidade, estamos retornando aos tempos primitivos da Lei predominante e indicativa da barbárie: quem com ferro fere, com ferro será ferido.  Parece-nos que chegou a hora de repensarmos sobre nossa conduta social em face do nosso destino. Estamos deixando de observar oportunidades de condutas tolerantes que devem estar presentes em nossa existência. Tais atitudes contribuem para gerar abismos entre os seres humanos, bem como, para destruir pontes de ligação entre eles. A violência, qualquer que seja ela, jamais será capaz de proporcionar soluções para nossos desencontros. Afinal, na expressão de Joanna de Angelis , “qualquer comportamento que coage, reprime, viola é adversário da liberdade”. Essa capacidade de construir o mundo, como a si mesmo, é uma tarefa individual, que identifica a personalidade da pessoa em face do seu arcabouço espiritual. Erich Fromm , nessa linha, ensina, “O homem tem de aceitar a responsabilidade por si próprio e o fato de que só empregando suas forças é que poderá dar um significado à sua vida”. A consciência dessa realidade poderá ser determinante para a solução dos graves conflitos que nos afligem na atualidade, e que têm sido a causa de imensos sofrimentos ao próprio ser humano.

No universo há princípios que não podem ser violados. Um deles se refere à unidade diante da diversidade. A ideia retratada pelo cosmo é de unidade, onde tudo se desenvolve na direção da harmonia e na direção de arranjos, como que compelido por uma lei onde predominam ajustes para restabelecer o equilíbrio entre as poderosas forças que agregam os múltiplos mundos planetários. Fazemos parte, como unidades autônomas, desse imenso complexo de forças positivas e negativas, que se interagem e nos impulsionam na direção do ponto Ômega, conforme conceito de Teilhard de Chardin. E, nesse particular, o autor  descreve, “melhor ainda: quanto mais imensa é essa esfera – o ponto ômega -, mais rico também, mais profundo e, portanto, mais consciente se anuncia o ponto em que se concentra o ‘volume de ser’ que ela abarca – pois que o Espírito, visto de nosso lado, é essencialmente poder de síntese e de organização” (destaque do autor).  Nos mais diversos campos de atuação do ser humano a capacidade de síntese e organização, conectada com as energias nobres que o envolvem, representam os fatores essenciais para o crescimento e libertação da criatura no universo. “O ser humano é todo um universo miniaturizado, cujos elementos que o constituem são de igual importância para a harmonia do conjunto”, ensina-nos Joanna de Angelis .

Diante dessas reflexões, a tolerância é um princípio unificador que decorre da compreensão, do amor ao próximo e da reciprocidade. Todo ser humano deve conhecer a diversidade do outro. E, por essa razão, deve observar e praticar atos que sejam compatíveis com normas de conduta fundadas no respeito e consideração uns em relação aos outros, nos diversos segmentos da existência. Nessa linha de intelecção Nicola Abbagnano  argumenta que: “A tolerância, portanto, é insubstituível, seja do ponto de vista epistemológico, como condição indispensável no caminho para a verdade, seja do ponto de vista ético, como condição necessária para autonomia individual. Ela é sinônimo de racionalidade, enquanto a intolerância equivale a irracionalidade”.  Esse é o desafio que se apresenta no ambiente planetário em que vivemos, onde a intolerância produz efeitos irracionais, que se contradiz com a nossa vocação e condição de seres humanos inteligentes. Quando decidir questões dessa magnitude, o magistrado deverá analisar o caso e flexionar com ponderação as regras fundamentais do direito de manifestação do pensamento, em face do principio constitucional da dignidade do ser humano. No confronto de regras fundamentais, será legítima a alternativa oferecida pelo artigo 334, número 2 do Código Civil português ao prescrever: “se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”. Nessa ordem de idéias, a liberdade de consciência e religião prevista no art. XVIII da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 5º, inciso VI da Constituição Federal de 1988, envolve o principio da dignidade da pessoa, e não pode ser violentada em razão do seu valor supremo que se sobrepõe aos demais, de forma a merecer especial proteção. A ponderação e a tolerância continuam ainda sendo princípios fundamentais necessários para uma vida saudável, que contribui para a pacificação dos espíritos dos homens direcionado para o ideal de construção do ser humano consciente e responsável.



Clayton Reis 
 Magistrado aposentado - Vice-Presidente da ABRAME        (claytonreis43@gmail.com).




1 - MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 24ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais. 
2 - FRANCO, Divaldo Pereira. O Homem Integral, pelo espírito de Joanna de Angelis, Salvador: Livraria Espírita Alvorada Editora, 1990, p.30. 
3 - FROMM, Erich. Análise do Homem, 2ª edição, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1961, p.48. 
4 - CHARDIN, Teilhard de. O Fenômeno Humano, São Paulo: Editora Cultrix Ltda., 1995, p. 294. 
5 - FRANCO, Divaldo Pereira, pelo espírito de Joanna de Angelis, no livro Dias Gloriosos, 4ª edição, Salvador: Livro Espírita Alvorada Editora, 2010, p. 23. 
6 - ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de Filosofia, edição Revista e Ampliada, São Paulo, Editora Martins Fonte, 2007, p.1144.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Brilhe a Vossa Luz!!!