Introdução

Há muito o que ser aprendido. Há muito o que podemos extrair do que vemos, tocamos, ouvimos, e acima de tudo, sentimos. Nossa sabedoria vem dos retalhos que vamos colhendo ao longo de nossa evolução, que os leva a formar a colcha que somos. Esse espaço é para que eu possa compartilhar das luzes que formam o que Eu tenho sido!!!

sábado, 27 de fevereiro de 2016

CRISE POLÍTICA: A CULPA É DE QUEM?

Por Vítor Bartoletti Sartori no Portal Filosofia Ciência & Vida.


Para muitos, o colapso do "comunismo" parecia abrir uma nova era, plenamente democrática, e marcada, seja à direita, seja à esquerda (se é que estas noções ainda fariam algum sentido), pela moderação e pela serenidade. Após o "curto século XX", a "era dos extremos", para que se use a expressão de Eric Hobsbawm (1917-2012), parecia estar efetivamente aberto o caminho para soluções negociadas e conciliadoras, em uma "era dos direitos", marcada pela garantia da participação cidadã e pela centralidade da política juridicamente mediada e garantida.

Tendo em conta este panorama, outros poderiam dizer que o século XXI mostra que, em verdade, é o oposto que se deu - não são poucas as guerras que marcaram nossa época desde o fim da URSS (símbolo de grande parte das esperanças da esquerda no século XX); conflitos religiosos e "fundamentalismos" (inclusive quando se diz oficialmente que "Deus abençoe a América") não são raros, sendo que as próprias promessas dos melhores momentos das revoluções burguesas (principalmente a francesa e a americana, com suas garantias individuais e políticas presentes nas cartas de direitos humanos) - Estado laico, participação política, cidadania, resolução das "questões sociais" - passaram longe de se realizar de modo pleno; em verdade, nem mesmo garantias mais básicas como a vedação de tortura são obedecidas pelos principais baluartes da "democracia" (basta pensar em Guantánamo).

A posição habermasiana sobre as possibilidades de um mundo em que o socialismo parecia não ser mais solução está no enfoque de uma razão específica, a razão comunicativa, por meio da qual se trataria justamente de realizar as promessas, no limite, "iluministas", tendo-se o " iluminismo como um projeto inacabado". Portanto, mesmo que Jürgen Habermas (1929) seja um autor que passa longe de um otimismo cândido quanto ao "colapso do comunismo", há de se apontar que se trata de um autor que não deixou de enxergar uma abertura importante neste. Na medida mesma em que caía a URSS, alguns falsos caminhos saíam do horizonte, sendo possível a retomada de uma espécie de "democracia radical", tratada pelo autor, sobretudo, em Direito e democracia, obra bastante influente na intelectualidade brasileira, e - de modo bastante mediado, é verdade - mesmo na intelectualidade ligada aos dois principais partidos nacionais, o PT e o PSDB.

A QUESTÃO DO CAPITALISMO

Dada não só a envergadura de um autor do calibre de Habermas, mas também sua seriedade e sinceridade na crença do potencial crítico que os intelectuais (e da razão mesma) poderiam ter, é necessária uma análise mais cuidadosa da questão: o próprio modo pelo qual a serenidade, tratada por Norberto Bobbio (1909-2004), vem a se ligar à "conciliação" e às soluções "negociadas" já indica que talvez haja algo subjacente a ser tratado, e o autor alemão não deixa de perceber isto, claro.

Primeiramente, isto se dá porque, no próprio modo como se constroem as esperanças posteriores ao "colapso do comunismo" tem-se como suposto que, afinal de contas, a tarefa colocada pela esquerda do século XX, a saber, a supressão do capitalismo, era algo impossível, inviável, e mesmo indesejável. Ou seja, grande parte da "mudança de paradigma" - considerada central e inafastável por muitos (inclusive por Habermas) - consistiu em "superar" uma questão pungente, diriam alguns (como aqueles que ainda acreditam que o marxismo seja uma referência inafastável, como David Harvey, só para citar um exemplo), fingindo que ela nem sequer era uma questão a ser tratada como tal. Para que se coloque em termos bastante rasteiros: a sujeira pode ter sido colocada "embaixo do carpete". E, com isso, a centralidade da luta anticapitalista foi abandonada por parte da esquerda (da qual faz parte o próprio Habermas), restando certo equilíbrio entre uma forma de ação estratégica que lidaria com aspectos como a burocracia, as finanças e a própria organização do trabalho de um lado, e uma ação mais ligada à formação das subjetividades e das identidades que passariam pelo reconhecimento intersubjetivo e comunicativo, opostos ao agir estratégico, por outro. Isto, como se percebe, não é nada ingênuo - autores como Habermas e Axel Honneth (1949), por exemplo, precisam ser respeitados, certamente: quanto a isto, não há dúvidas - no entanto, talvez tal posicionamento traga como ponto cego questões que pareciam "ultrapassadas", mas que, diante do desenvolvimento da sociedade contemporânea, fazem que a serenidade possa, no limite, ser levada a seu oposto.

DIREITO E DEMOCRACIA, DE JÜRGEN HABERMAS, É BASTANTE INFLUENTE NA INTELECTUALIDADE BRASILEIRA LIGADA AOS DOIS PRINCIPAIS PARTIDOS NACIONAIS, O PT E O PSDB

Manter a serenidade, bastante defendida por um autor "progressista" importante como Norberto Bobbio, diante da crescente influência dos imperativos econômicos na gestão estatal é bastante difícil, por exemplo. Autores como Habermas certamente se opõem a isto, não há dúvida. No entanto, se seguirmos o diagnóstico de Karl Marx (1818-1883) (retomado por Harvey e outros), a resolução da questão traz à tona, novamente, a retomada decidida de uma luta anticapitalista, e não a contraposição entre duas formas de razão. A questão é bastante mediada e complexa, no entanto; para o que tratamos aqui, basta que tenhamos mencionado a influência habermasiana na teorização contemporânea, bem como certa recusa, por parte da grande maioria daqueles influenciados por este grande pensador, de um enfrentamento decididamente anticapitalista.

Uma esquerda que se coloca como "esquerda para o capital" solapa as próprias bases, como aconteceu com o Partido dos Trabalhadores, principalmente na última década

BRASIL E A SERENIDADE

Para tratar do tema que aqui abordamos de modo mais explícito, pode-se dizer que a questão acerca da "mudança de paradigma" da história recente efetivamente se colocou na medida em que, em âmbito mundial, mas de modo particular na história recente do Brasil, o modo pelo qual se organizou, seja a oposição, seja o apoio àqueles que detinham institucionalmente o aparato político-partidário, foi essencialmente "conciliador" (em oposição à radicalidade de uma solução "comunista") na medida em que se reconciliou também com aquilo que subjaz na organização social contemporânea (a própria estrutura produtiva capitalista) e que fez que toda "conciliação" fosse também, literalmente, uma "negociação". E, neste ponto, as coisas adquirem contornos que são bastante importantes para se tratar do presente, e do Brasil em específico.

De certo modo, a própria serenidade e moderação passam a ter que ser coniventes com aquilo mesmo que traz a impossibilidade de um "reconhecimento" autêntico entre os autores sociais (questão tida como central por Honneth e, de modo mais mediado, por Habermas); neste sentido, ao se deixar de tratar da supressão do capitalismo como uma questão de grande relevo, este último bate na porta e faz que o próprio ímpeto de um Habermas e de um Honneth (bastante influentes em parte da esquerda da década de 1990 e 2000, e ainda bastante influentes hoje) veja-se reforçado somente na medida em que é ontopraticamente, em verdade, inviabilizado pela continuidade das questões que foram "colocadas embaixo do tapete". Aquilo mesmo que é tirado de campo pela "mudança de paradigma" inviabiliza a realização das promessas daquela mudança.

As passeatas "populares" que vêm sendo apoiadas pelo PSDB dariam orgulho aos organizadores da famigerada "Marcha pela família com Deus pela liberdade", de março de 1964

Na medida mesma em que a separação entre "sistema" (em que os imperativos de mercado aparecem) e "mundo da vida" (esfera de reconhecimento intersubjetivo e de um agir destituído de dominação) parecem ser centrais para um autor como Habermas, e para muitos ideólogos dos partidos da ordem do Brasil, para preservar a esfera democrática nas sociedades atuais, a questão, ligada à estrutura objetiva da sociabilidade capitalista, traz à tona o fato de só ser possível se colocar contra a influência econômica nas decisões, por assim dizer, "políticas", ao se suprimir o próprio capitalismo. Uma forma de sociabilidade mais democrática é certamente desejável e a dificuldade de tal tarefa não é pouca. E, neste sentido, Habermas e Honneth passam longe de qualquer defesa cínica da convivência com o ímpeto agressivo da reprodução diuturna do capital; no entanto, aqueles que se viram como gestores de problemas urgentes de uma sociedade capitalista hipertardia como o Brasil, tanto o PT quanto o PSDB, se quisessem apresentar resultados imediatos em seus mandatos da presidência, foram levados a certas "negociações" e "conciliações" justamente com o que há de mais vil na sociabilidade capitalista (ao contrário do que seria defendido por Habermas, por exemplo). Um fato importante a se notar, pois, é que longe de se tratar de governos que tiveram a falta de intelecto como marca, teve-se o apoio de certa nata da intelectualidade brasileira de cada lado - o PSDB, por exemplo, foi apoiado pelo filósofo José Arthur Giannotti (1930), ao passo que o PT foi apoiado pela filósofa Marilena Chauí (1941). E, neste sentido, as mudanças efetivas não se dão tanto ao se mudar o modo de conceber determinadas noções - não se trata sequer de "ressignificá-las"; antes, é necessário transformar efetivamente a própria realidade.

TANTO O PT QUANTO O PSDB, PARA APRESENTAREM RESULTADOS IMEDIATOS EM SEUS MANDATOS, SERÃO LEVADOS A NEGOCIAÇÕES E CONCILIAÇÕES COM O QUE HÁ DE MAIS VIL NO CAPITALISMO

O ELOGIO à serenidade pode parecer real e efetivamente como o outro lado da necessidade de convivência com uma potência social cujo ímpeto agressivo já foi destacado por muitos, e principalmente por Karl Marx, o capital

A democracia brasileira, desde seu início, convive em conciliação com aqueles que apoiaram o golpe em 1964 e que, se não contemplados seus interesses financeiros, apoiam-no também hoje


Uma "mudança de paradigma" teve apoio ativo da intelectualidade nacional. No que é necessário, novamente, algum cuidado quanto a esta "mudança" - ela pode muito bem trazer uma continuidade decisiva - não basta, assim, "compreender o mundo de diferentes maneiras; trata-se de transformá-lo", como apontou Marx na sua XI tese sobre Feuerbach. Para que se explicite a coisa por outro ângulo: no fundo, também o "elogio à serenidade", de um Norberto Bobbio, tem por trás de si como pressuposto a mesma assunção: afinal de contas, a sociabilidade capitalista não é algo a ser colocado em questão, tratando-se de um dado ineliminável, a ser "compreendido de maneira diferente". E isto tem consequências grandes para o pensamento crítico, é preciso que se diga. Os vernizes de serenidade, de tolerância e todas as virtudes liberais imagináveis, para que se use a dicção de Marx sobre Georg Hegel (1770-1831), ao final, poderiam ter uma função - mesmo que inconsciente - nefasta: a de "tornar sublime o existente". Se Marx ainda é atual como querem Harvey e outros, na medida mesma em que se coloca "debaixo do tapete" uma questão pungente, nada mais se faz que "dourar a pílula". Neste sentido, tal "mudança de paradigma" pode ter errado o alvo de modo decisivo, dando ensejo justamente à permanência daquilo que parecia não ser mais um problema decisivo, mas que, ao final, pode ser central em diversos sentidos, a própria posição anticapitalista.

Quando se percebe que, no Brasil, ao final, para que se atue em meio à política institucional dos partidos da ordem foi necessário "dourar a pílula" e supor como dado imutável justamente o que tem que ser questionado, a "crítica" corre o sério risco de se colocar de modo bastante paradoxal: como aquilo que Paulo Eduardo Arantes (1942) chamou - justamente ao analisar o pensamento uspiano de um Giannotti, mas também de outros - de "crítica a favor". Por vezes, justamente ao se criticar o desenvolvimento de aspectos pontuais da sociabilidade capitalista (e não o capitalismo como tal), vem-se a legitimar o último, e mesmo as consequências do último, de modo que o discurso crítico, neste ponto, aparece como essencialmente esvaziado: novamente, correndo-se o risco de ser bastante rasteiro, pode-se dizer que se criticam os sintomas sem se buscar um modo de curar o paciente da doença. Uma "esquerda" que atue deste modo somente poderia se conformar como uma "esquerda para o capital", como disse Eurelino Coelho. O cenário do PSDB - social-democrata, no nome - também é bastante preocupante, dado que o partido não só é levado à defesa de programas de governo que se colocam contra qualquer conquista de uma social-democracia digna de tal nome; ele também é levado a se apoiar nas camadas mais conservadoras (e raivosas) da sociedade brasileira. Se antes se buscava o apoio dos Giannottis, hoje, parece ser mais importante o apoio daqueles que vociferam contra qualquer programa social e que tendem a ter posições políticas claramente à direita (inclusive, demonstrando simpatias por um golpe militar ou por qualquer coisa que vá retirar "a esquerda" do poder).

O QUADRO POLÍTICO BRASILEIRO MANTÉM INTACTAS AS BASES E OS PROTAGONISTAS SOCIAIS QUE APARECERAM ATÉ ENTÃO AO LADO DAQUELES QUE DERAM APOIO À DITADURA MILITAR

RESQUÍCIOS DA DITADURA

Diante disso, deve-se dizer: o cenário político brasileiro atual, até certo ponto, é absolutamente vergonhoso - depois de uma transição "lenta, gradual e segura", elege-se, sem eleição direta, Tancredo Neves - um presidente que não assume e em seu lugar aparece José Sarney, um tradicional político do partido de apoio à ditadura. Depois, com a primeira eleição direta da "nova república" é eleito Fernando Collor de Mello, outro político cuja família era intimamente ligada à preservação da ditadura militar - a "nova república" já nasce velha, pois. Depois disso, em 1994, parte da nata da intelectualidade brasileira, representada na "esquerda" do MDB (conformada no PSDB dos anos 1990) faz justamente aquilo que os "liberais" (economicamente) saídos da ARENA, partido de apoio à ditadura, não conseguiram dar conta no mandato inacabado de Collor; depois disso, de 2002 até 2014, o PT, é verdade que com algumas importantes "conquistas" (que podem se perder com os "ajustes" de hoje...) no aspecto social, mantém intactas as bases mesmas e os mesmos protagonistas sociais que apareceram até então ao lado daqueles que deram apoio, inclusive, à ditadura militar no passado. Neste sentido, a conciliação permeia a história política recente na medida em que se tem uma reconciliação com o velho, representado pelas forças sociais retrógradas que noutro momento derrubaram o presidente João Goulart.

As consequências da "volta dos que não foram"

Colocada a questão nestes termos, é preciso que se reconheça uma dupla irracionalidade: de um lado, uma "esquerda" que vem a ter como palavra de ordem "não vai ter golpe" já admite que, ao final, na melhor das hipóteses, as coisas vão continuar como estão, sendo seu potencial crítico extirpado. Doutro lado, a "volta dos que não foram", coloca-se de modo absolutamente animalesco, nas ruas, com demonstrações racistas, homofóbicas e com um discurso contrário a qualquer posição, não só à esquerda, mas minimamente tolerante - eis que o próprio discurso liberal é visto como "comunista".

Ou seja, a rigor, a "redemocratização" nem sequer retirou de cena o espectro do "golpe" o qual - tal qual as vicissitudes inerentes à sociabilidade capitalista - foi colocado, por assim dizer, " debaixo do tapete", esperando-se que, por si, nunca mais voltasse à cena política; no cenário atual é claro tal espectro que, com a "bancada da bala", aparece desavergonhadamente em deputados e, inclusive, em algumas figuras públicas. O ridículo da situação é evidente na medida em que justamente aqueles que se contrapuseram à "ordem" pós-1964 (tanto a intelectualidade do PSDB, quanto do PT), ao buscar compor governos com base na conciliação e na negociação com aqueles mesmos que apoiaram a ditadura militar, acabaram - indiretamente - propiciando as condições para que soluções negociadas e conciliadoras fossem vistas como sinônimo de democracia, restando a "democracia radical" (defendida por um autor como Habermas) como algo, ao fim, inalcançável, e mesmo indesejável: trata-se de "governabilidade", afinal de contas. E o momento atual é aquele em que a sujeira já não cabe mais "embaixo do tapete".

Em nome da "governabilidade", a Educação sofre cortes gritantes por parte do atual governo, ao passo que o imposto sobre grandes fortunas acaba se tornando algo não só distante, mas impossível com uma agenda conciliadora
Neste sentido específico, por mais que se trate de algo absolutamente brutal, e por mais que seja vergonhosa, de qualquer ponto de vista, a defesa de um golpe militar (ou de um "golpe branco", como ocorrido recentemente no Paraguai), não é surpreendente que tal dicção volte à tona.

Primeiramente, porque ela nunca foi efetivamente extirpada - a morte natural de posições conservadoras e intimamente afinadas com aquilo de pior na realidade nacional não é algo que possa se dar. Em segundo lugar, a pauta da esquerda institucional da nova república foi emergencial: diminuir significativamente a miséria (PT), por exemplo, era algo urgente, e há de se reconhecer que isto realmente se deu nos três primeiros mandatos do PT no Planalto. Isto, porém, foi conseguido com um elevadíssimo custo: alianças espúrias feitas em nome da "governabilidade" confluíram com a perda do destaque dado aos movimentos sociais e aos próprios trabalhadores, de tal feita que o Partido dos Trabalhadores começa a deixar de ter sua base de apoio nos próprios trabalhadores. Mesmo os programas sociais do governo não reverberam no incremento de direitos - trata-se de programas de governo, conseguidos, também, mediante acordos espúrios, e a manutenção destes acordos não só é custosa; dependendo da conjuntura econômica (que tem o "mercado mundial" como principal ator), só pode ser mantida com concessões tremendas justamente nos campos que foram, e teoricamente ainda são, os mais valorizados pela esquerda.

A "esquerda" institucional, pois, deixa de lado os próprios programas da esquerda e vê-se realizando o programa (neo)liberal com um ajuste fiscal que não teme cortar as verbas da Educação. Neste sentido, a estratégia "realista" da conciliação e das reformas graduais leva a seu oposto. Na medida mesma em que se colocaram questões pungentes "debaixo do tapete", elas cobram a conta hoje, de modo brutal: tanto a busca de uma democracia de massas (que não rompesse com o capitalismo) quanto a manutenção da arquitetura institucional da ditadura militar (como no caso da militarização da polícia, por exemplo, e do aparato jurídico, como mostrou Gilberto Bercovici) se apresentam na medida em que, de um lado, o "mercado" não só é personificado, é muito mais considerado que movimentos sociais, dando as rédeas da política econômica do governo. Doutro lado, cresce a "bancada da bala" e as posições conservadoras em todos os campos, as quais, coligadas com diversos tipos de intolerância, não têm vergonha alguma em dizer para todos que queiram, e não queiram ouvir, que há de se render homenagens à ditadura militar, aos torturadores, tendo-se bandeiras como aquelas dos direitos humanos como algo a ser aviltado e extirpado.

Que fique claro: a "corrupção"
disseminada não é fruto
senão daquilo que "resta da ditadura"
A serenidade, pois, neste contexto, torna-se seu oposto, sendo impossível contar com qualquer tipo de tolerância. "Negociar" neste terreno não só é uma tarefa inglória: talvez, seja efetivamente fadada ao fracasso, sendo a conciliação um rendimento àquilo de mais vil.



SERENIDADE E AGRESSÃO

A manutenção mesma das bases da sociedade capitalista nos moldes brasileiros, bem como da organização política da "nova" república, supostamente defendidos em nome da serenidade e das soluções que não fossem "radicais", tem como consequência o fortalecimento daquilo que foi colocado "debaixo do tapete" na "redemocratização", e que aparece com toda a força hoje, quando a "era dos direitos" é conciliada com o ataque aos direitos trabalhistas ao passo que o "elogio à serenidade", e mesmo a tolerância, são confundidos com nada menos que "o comunismo" em certas camadas mais virulentas e raivosas dos conservadores.

Neste sentido, se uma crítica ao capitalismo mesmo foi vista como algo "utópico", talvez seja muito mais "utópico" se acreditar no poder da conciliação e da negociação; assim, talvez possa ser o caso de se voltar àquele que tratou com mais cuidado justamente daquilo que, o desenvolvimento social mesmo mostrou, não pode ser colocado "embaixo do tapete", Karl Marx. Isto se dá, não só porque, talvez, trate-se do autor mais mal lido na tradição filosófica ocidental; o autor ganha relevo na medida em que, como mostraram István Mészáros (1930) e David Harvey, por caminhos distintos, mas convergentes, a existência e reprodução mesma da sociedade capitalista, hoje, trazem consigo aquilo de mais grotesco na sociabilidade contemporânea. Para estes autores, tal qual em Marx, formas distintas de agressão e de opressão não são simplesmente algum acidente na história do capitalismo: são o modo mesmo de expressão deste sistema social, que tem como certidão de nascimento a "acumulação originária" realizada principalmente com os cercamentos (expropriação sangrenta dos camponeses de suas terras) e como atestado de sua reprodução diuturna aquilo que Harvey chamou de "acumulação por espoliação", realizada tanto por meio de guerras como de privatizações de serviços básicos e tantas outras maravilhas do (neo)liberalismo.

Dificilmente seria possível negar que os ânimos estão à flor da pele no Brasil contemporâneo. Isso, porém, não significa necessariamente que exista uma polarização clara no campo da política institucional - antes, justamente este acirramento de ânimos pode advir da falência do projeto conciliador da nova república, desenvolvida a partir da transição "lenta, gradual e segura". O modo pelo qual a questão se coloca (principalmente na mídia oligopolizada brasileira) passa longe de esclarecer as raízes da questão. Hoje, no Brasil, a serenidade de outrora dá lugar ao discurso inflamado, convertendo-se em uma crítica ao "tamanho do Estado" e à "ineficácia do Estado", tendo-se por claro que, com aquilo que fora colocado "debaixo do tapete", há uma defesa exacerbada de uma nova rodada de "acumulação por espoliação" (e não é por acaso que a "indignação seletiva" volta-se contra a Petrobras). Até mesmo o "combate à corrupção" não é possível com a conciliação e com a negociação - muito pelo contrário: estas últimas que, mediante a preservação tanto da égide do capital (agora, bastante financeirizado) quanto daquilo que "resta da ditadura", levam à necessidade desta na política institucional. Neste sentido, aquilo colocado "debaixo do tapete" cobra um alto preço também quando parece haver certo curto-circuito entre a "volta dos que não foram", a reprodução diuturna do capital e o financiamento (que é um investimento) privado e empresarial das campanhas políticas. Até certo ponto, dizer que uma esfera pública que tem estas bases é realmente democrática só pode ser uma piada, de muito mau gosto, diga-se de passagem.

O discurso verborrágico que vem ganhando força é justamente o discurso a favor da manutenção destas vicissitudes. E, dado que a conciliação já não se mostra mais possível, é preciso se dizer que um programa contra estes vícios somente é possível com uma posição decidida contra "o que resta da ditadura", o que tem como consequência uma posição firme contra a própria conformação do capitalismo brasileiro. Certamente pode-se falar de crise hoje, não há dúvidas. Isto, porém, não se dá tanto nos termos propagandeados pela mídia oligopolizada, quanto na medida em que esta traz consigo uma situação insustentável dentro das estruturas vigentes (tanto econômicas quanto políticas). Tratar desta questão no Brasil certamente é bastante difícil, dado que na crise, "verificam-se os fenômenos patológicos mais variados"¹. Por aqui, certamente, verificamos estes fenômenos, expressos na "volta dos que não foram"; no entanto, aqui "o velho" nem sequer morreu, e parece não estar disposto a qualquer espécie de eutanásia. O "novo", por sua vez, tratado por Antonio Gramsci (1891-1937), só pode nascer com uma posição decidida contra a ordem presente, e, neste sentido, não é tanto preciso uma "mudança de paradigma", mas uma crítica resoluta à própria conformação do capitalismo, como aquela feita por Karl Marx.

1 - GRAMSCI, 2002, pág. 184

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