Introdução

Há muito o que ser aprendido. Há muito o que podemos extrair do que vemos, tocamos, ouvimos, e acima de tudo, sentimos. Nossa sabedoria vem dos retalhos que vamos colhendo ao longo de nossa evolução, que os leva a formar a colcha que somos. Esse espaço é para que eu possa compartilhar das luzes que formam o que Eu tenho sido!!!

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

UM NOVO SENTIDO PARA A VIDA



Os olhos dele brilharam do outro lado da vitrine e meu coração apertou-se. A lembrança de um tempo que já ficou tão distante desabou sobre mim, de repente. Crianças não costumavam parar na minha vitrine, mesmo na época de Natal, com seus enfeites e luzes. Mas ele estava ali, e era muito parecido, muito. Não consegui me conter. Foi como se eu não dominasse meu movimento de ir até a rua e parar do lado dele na calçada.

– Do que você gostou? – perguntei.

Ele levantou para mim um olhar sem expressão, parecendo não entender bem o que eu havia perguntado, como se estivesse distante dali. Meu coração apertou-se uma vez mais e o médico já havia me avisado várias vezes para cuidar dele, que não ia nada bem. Os olhos do menino eram os do meu filho, que a morte havia levado, justamente no dia do Natal. As lágrimas turvaram minha vista e voltei para dentro da loja, pensando em não mais me importar com ele. Nem vi o que fez. Fui para o escritório e me afundei na poltrona. Quinze anos. Quinze anos se foram na voragem do tempo. Ele tinha 20 quando se foi. Lutamos desesperadamente para salvá-lo. Foi tudo tão de repente! Começou com uma dor de cabeça e em poucos dias se foi nosso Raul. Meningite! Quinze anos. Quinze Natais, tristes, sem luzes, sem cantigas, sem presentes. Cecília partiu porque não suportou o silêncio. Num dos últimos Natais, nem sei mais qual, a dor da saudade sufocou meu peito e a pressão subiu. Fiquei no hospital uns dias e, quando voltei, ela não estava mais em casa. Eu já sabia que ela iria embora. Creio que me culpava de alguma maneira e eu não me importei muito. Não tenho mais contato com ela, mas dizem que também está sozinha. No Natal eu apenas fecho a casa, apago as luzes e durmo cedo. A casa é em cima da loja, então trabalho até tarde nesta noite e vou direto para cama.

A sala do piano está fechada desde sua morte. Ele tocava todas as músicas de Natal. Era precoce, um virtuose, um gênio da música. Ia tocar o Oratório de Natal de Bach aquele ano. Nunca mais abri aquela sala! E algumas pessoas ainda me criticam por não crer em Deus! Querem que eu acredite em vidas sucessivas, em carma. Querem dizer que nada acontece sem um motivo. Querem justificar a morte de um gênio e a dor que ficou em seu lugar com teorias abstratas e sem sentido. Falam em reencarnação... que absurdo!
Voltei para a loja e, para meu espanto, ele ainda estava lá, olhando fixamente para algum instrumento da vitrine. Por que não foi embora? Onde andam os pais desta criança? Novamente fui até ele, pensando agora em perguntar por seus pais, mas, quando cheguei perto, ele apontou para um teclado Kurzweil, o mais caro da loja. Por que uma criança se interessaria por um teclado profissional? Por que justamente o teclado de que Raul gostava?
– Você gostou do teclado?
– Eu queria tocar nele?
– Ora, mas quantos anos você tem?
– Eu tenho oito anos... posso tocar para você?

Ele falou olhando nos meus olhos e os seus olhinhos brilhavam. Lembrei do dia em que Raul saiu da primeira aula de piano e correu para a loja, para me mostrar o que aprendeu. Foi isso que ele falou aquele dia, apontando para outro Kurzweil: – posso tocar para você?
Apanhei o menino pela mão e arrumei espaço pra ele na frente do teclado, depois o liguei e coloquei no modo piano. Puxei uma cadeira e ajustei a altura do suporte. Nem sabia ao certo por que fazia isso. O menino ficou um longo tempo olhando para as teclas e pensei em falar para tomar cuidado porque era um instrumento caro, mas, de repente, ele pousou as mãozinhas suavemente sobre as teclas e fechou os olhos. Meu coração crispou-se. Era exatamente o que Raul fazia antes de tocar. Que loucura! Então ele tocou, e o mundo ao meu redor começou a rodar...
Ele tocou de olhos fechados, como se estivesse em transe, o Oratório de Natal, de Johann Sebastian Bach. Uma criança de oito anos! Um soluço embargou minha voz e as lágrimas me cegaram. O coração apertou-se e tudo escureceu, mas continuei ouvindo a música, que parecia chegar aos meus ouvidos, vinda de longe, de outro lugar, de outro tempo. Então o peito começou a doer e precisei reagir. Respirei fundo e abri os olhos. Havia uma mulher parada ao lado do teclado e seus olhos estavam marejados de emoção.

– Você é a mãe? – Perguntei, com um fio de voz.
– Oh! Não, mas hoje sou responsável por ele e estava desesperada porque sumiu... mas lá da rua ouvi a música e tive certeza que era ele... não é incrível?
– Responsável?
– Sim... ele apareceu no orfanato numa manhã. Estava lá, no portão, logo que o dia clareou, alguns meses atrás. Ninguém sabe, nem ele, de onde veio. No primeiro dia já se sentou na frente do teclado da aula de música e tocou, para espanto de todos... tocou maravilhosamente

– Ele é órfão?
– Na verdade, não sabemos, meu senhor. Sabemos apenas que apareceu lá e não tem nenhuma memória sobre o que aconteceu antes disso... mas é uma criança saudável e, como pode ver, um gênio... Mas agora precisamos ir, o ônibus está nos esperando para voltarmos para o abrigo...

A mulher acariciou a cabeça do menino e lhe deu um beijo delicado, depois segurou suas mãozinhas que deslizavam com maestria pelo teclado. Ele a olhou um pouco desapontado, mas ela falou com tanto carinho que ele sorriu:
– Vamos, Raul, todos estão nos esperando... e ainda temos que preparar a festa da noite. Não esqueça que hoje é noite de Natal e você falou que ia tocar para nós...
– Raul? – perguntei, ainda mais espantado.
– Sim, é a única coisa que ele lembra, do nome... Tenha um bom dia, senhor...
– Alô! Cecília... sim, sou eu... precisamos conversar.
– Não sei bem o motivo, mas sabia que você ia me ligar hoje, por ser Natal...
– Sim... é Natal... por isso estou ligando, para convidar você para ir a uma festa...

– Você está me convidando para ir numa festa, na noite de Natal?
– Uma festa num orfanato...




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